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Hermann Hesse e o livro que conta a misteriosa Viagem ao País da Manhã

Hermann Hesse e o livro que conta a misteriosa Viagem ao País da Manhã

by Tiago Leão

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Confesso que já andava para ler Hermann Hesse há algum tempo e estive quase, quase a comprar Siddartha. Há cerca de um mês apanhei uma promoção online na Fnac e resolvi juntar uma das obras do autor à minha coleção pessoal. A escolha não recaiu sobre Siddhartha, mas depois de ler Viagem ao País da Manhã, devo dizer-vos fiquei com vontade de passar revista a tudo o que foi escrito pelo autor. No final, só tenho um ponto negativo a apontar: é pena o livro ser tão curto.

Mas, antes de adiantar mais informação, há algo que a salientar. Tal como referido na nota introdutória deixada pela tradução, o conteúdo de Viagem ao País da Manhã (Die Morgenlandfahrt, na versão original) é altamente subjetivo. A história em si é relativamente simples, mas os contornos estranhos em que se desenrola e a falta de informação concreta sobre o que se passa realmente, dão origem a uma enorme margem especulativa. Assim, independentemente das interpretações que possamos encontrar, (tal como acontece na maioria dos livros) o melhor a fazer é ler e tirar as suas próprias conclusões.

Avancemos, então, para aquilo que temos de concreto: a sinopse. Ao abrirmos as primeiras páginas, deparámo-nos com um grupo de viajantes que ruma em direção ao País da Manhã. Onde fica esse país? Ninguém sabe muito bem, mas o importante aqui não é o destino, mas a viagem. Com motivos incógnitos e sem rumo aparente, estes peregrinos fazem parte de uma misteriosa Ordem e a romaria sem chegada não é mais do que um ritual de iniciação, cuja finalidade é colocar à prova valores como a fidelidade, a fraternidade a crença.

viagem-ao-país-da-manhã-hermann-hesseAlém do próprio Hermann Hesse (HH) – que ocupa o lugar de personagem principal -, à medida que as folhas se sucedem, encontramos outros elementos da Ordem. Entre eles estão personagens históricos e figuras literárias de outras andanças. É o caso do pintor modernista Paul Klee, o frade Alberto Magno, o também pintor Klingsor, o poeta Lauscher e Vasudeya, o barqueiro. O facto de estas figuras não serem contemporâneas e de algumas nem sequer terem existido realmente não importa para o caso: tal como o tempo e o espaço, em Viagem ao País da Manhã, também isto é relativo.

Toda a história desenrola-se em torno de uma personagem aparentemente pouco relevante, mas cuja importância vem, mais tarde, a ser reconhecida. Quando decide deixar o grupo, a fé é abalada e a Viagem ao País da Manhã deixa de ser importante aos olhos dos peregrinos. Mais tarde, HH começa a demanda de vários anos para voltar a encontrar o amigo perdido e eis que há uma revelação surpreendente.

Durante o percurso de descoberta, da qual pouco chegamos a saber, HH aceita o desafio – que ele próprio considera impossível – de encontrar descrever a viagem que percorreu. No entanto, cedo se apercebe de que aquilo a que se propõe é impossível e que, mesmo que falasse apenas da sua própria experiência, continuaria longe de transpor para o papel tudo aquilo que viveu, pensou e sentiu. Aqui podemos olhar para o livro como uma espécie de catarse, onde Hesse transpõe para as páginas os seus tormentos e preocupações enquanto escritor.

O teor subjetivo de d’ A Viagem ao País da Manhã

Como referi acima, uma das características mais integrantes de Viagem ao País da Manhã está nas parcas explicações que o escritor nos deixa sobre a Ordem, os seus motivos e as suas crenças. Talvez não existam sequer motivos e o que importa mesmo é o valor da crença, independentemente do objeto, mas esta, como salientado, é só uma das muitas interpretações.

Sobre a Ordem, sabemos que possui uma hierarquia de comando, um alto representante e um tribunal. Os mais novos passam pela viagem, um teste de fogo que não conhecemos muito bem em que é que consiste. Cheia de segredos, esta organização – que tem mais de espiritual do que de religioso – é um dos ingredientes que me leva a dizer que o livro poderia ter o dobro ou até o quíntuplo das páginas. No final, não há como terminar a obra sem, pelo menos, uma mão cheia de questões, cujas respostas dariam seguramente para uma série de outros livros.

 

Importa ainda salientar que Viagem ao País da Manhã foi escrito inicialmente como uma fábula com o objetivo óbvio de colocar em contraste duas realidades: o mundo do sonho, da crença e da viagem; e o mundo do dia-a-dia, cinzento, pautado pelo ambiente das grandes cidades. A oposição leva-nos a crer que talvez a resposta para a felicidade está no nomadismo e na procura constante com a noção de que nunca a encontraremos. Repleto de simbolismo, Viagem ao País da Manhã é, na minha opinião, um livro intemporal para ler e reler à medida que os anos passam.

Hermann Hesse: o autor e a personagem

Conhecido por ter recebido o Nobel da Literatura de 1946, Hermann Hesse usou A Viagem ao País da Manhã para exprimir as suas próprias dúvidas enquanto escritor e pessoa individual e coletiva. A história foi originalmente escrita em 1930-31, mas as questões abordadas têm a capacidade de se moldar à passagem do tempo, quer pela natureza humanista, quer pela pertinência das questões levantadas.

Hessse nasceu, em 1877, na Alemanha país que foi o seu até 1923, ano em que se naturalizou suíço. As referências indianas sobre as quais escreveu com frequência vêm da infância: os pais foram missionários protestantes que viajavam frequentemente para a Índia. A educação, todavia, foi alemã, mas a religião não era um assunto com o qual se identificava. As divergências levaram-no a sair de casa, em 1912, rumo à Suíça. Começou então a trabalhar como livreiro e operário, iniciando-se na escrita de forma completamente autodidata.

A ligação maior à Índia e à espiritualidade do país remonta ao ano anterior, em 1911, e acentuou-se com o despoletar da I Guerra Mundial. O reconhecimento chegou em 1946, data do recebimento do Prémio Goethe. No mesmo ano, recebeu também o Nobel.  Hesse faleceu em 1923 e o seu túmulo encontra-se no cemitério de San Abbondio em Montagnola, onde também está sepultado o icónico Hugo Ball, autor do Manifesto Dadaísta.

As obras mais populares de Hermann Hesse são Siddhartha e O Lobo de Estepes. Esta última foi particularmente elogiada pela crítica acérrima à I Guerra Mundial, tornando-se muito popular na Alemanha durante o pós-guerra. A alienação da escrita que encontramos em A Viagem ao País da Manhã é um tema comum, mais presente em contos e cartas escritas pelo autor. Em tom irónico, o autor chegou a afirmar que tinha desenvolvido um talento nato para o ócio manifestado através da escrita, chegando-se inclusive a especular que houve alturas em que a correspondência média diária chegava às 150 páginas.


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