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Entrevista com a Marquesa de Ficalho, neta de Eça de Queiroz (Parte I)

Entrevista com a Marquesa de Ficalho, neta de Eça de Queiroz (Parte I)

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Em 2003 tive o enorme prazer de entrevistar Maria das Dores Eça de Queiroz de Mello, neta de um dos maiores escritores de língua de portuguesa de sempre: . Lamentavelmente, a Marquesa de Ficalho faleceu pouco tempo depois em Abril de 2004. Agora, volto a publicar a entrevista em três partes distintas: é a minha Homenagem a uma senhora encantadora que nunca consegui esquecer.

Logo no primeiro contacto com Maria das Dores Eça de Queiroz de Mello, a neta do Mestre da Ironia transmite a sua interpretação sobre o lugar que ocupa no Mundo. “Não tenho muito para contar”, afirma com simpatia, mas também com inevitável distância, provocando sorrisos imediatos. Após as devidas apresentações, a boa disposição alastrou em doses moderadas.

Alguns minutos antes do início da entrevista, Maria das Dores posa para a fotografia ao lado da estátua de Eça de Queiroz que embeleza um dos jardins do Solar Condes de Resende (Vila Nova de Gaia), onde o escritor se apaixonou por D. Emília de Castro.

Sentada ao lado do avô que nunca conheceu em vida, a neta do escritor de ficção mais realista que alguma vez existiu permanece escassos segundos a olhar para a estátua. Com um peculiar sentido de humor, a Marquesa de Ficalho desvia os olhos para uma foto de com os filhos ao colo, incluindo José Maria, pai de Maria das Dores, vira a cara novamente para a estátua, inspira o ar do jardim enquanto o Sol ilumina timidamente o seu rosto, repara que o fotógrafo ainda não terminou a sessão e comenta a sua figura de forma irresistível: “Aqui nesta parte do pescoço não fico bem, porque nota-se este buraco. Estão a ver? O meu perfil não é muito fotogénico. Não faz mal”.

“Estas japoneiras são mesmo muito bonitas”

Após esta brincadeira, o sorriso nasce naturalmente na face da Marquesa de Ficalho, invadindo também o espírito dos presentes, incluindo o historiador Gonçalves Guimarães, responsável na altura pelo Solar Condes de Resende e anfitrião da tarde.

Depois, Maria das Dores levanta-se e começa a falar sobre o esguicho de água que a fonte do jardim brota lenta e timidamente. A observação provoca de imediato a recordação de uma história pessoal e íntima, que conta com entusiasmo redobrado em cada frase. Então, subitamente, depois de explicar que já abandonou a ideia de construir uma fonte na casa de Serpa, embora a ideia tenha alimentado durante muito tempo algumas peripécias, conversas e momentos que foram agora recordados com prazer, deixa cair uma frase simples: “Estas japoneiras são mesmo muito bonitas”.

A emoção intensa com que pronunciou esta frase obrigou-me a olhar para as árvores e associá-las à beleza irresistível da natureza, assim como à carga dramática que Maria das Dores imprimiu na sua admiração. O cenário era ideal para reviver histórias: sol, sombra, relva, uma rosa altiva apontada com fervor, um banco, canteiros, um cavalo a relinchar, uma fonte, os pequenos caminhos que outrora foram percorridos pelos Condes de Resende, além de restantes familiares e amigos. Após dez segundos de silêncio ambos começamos a andar em direcção ao Salão onde decorreu a entrevista. Porém, mais do que o perfil da estátua de , a sombra e beleza das japoneiras provocou uma cumplicidade feita de risos e confidências, criando uma envolvência que suprimiu a natural distância entre o repórter e a entrevistada.

Uma infância de sonho na Granja

“Nasci na Granja há muitos anos, mais precisamente no dia 18 de Julho de 1918, mas apenas fui registada no dia 19 de Julho. O meu tio foi registar-me tarde e a más horas. Ainda por cima entrou no Registo Civil com o chapéu na cabeça. Então, disseram-lhe para tirar o chapéu. Ele perguntou porquê e responderam que a estátua da República merecia mais respeito. Depois, o meu tio respondeu: «Não conheço essa senhora». Acabou por ser expulso do Registo. Por causa desta história, acabei por ser registada apenas no dia seguinte”.

As palavras saem com naturalidade e de forma ininterrupta Maria das Dores, terceira filha de José Maria Eça de Queiroz e Matilde de Castro, explica as origens com orgulho: “Depois da implantação da República, a minha mãe foi para Londres, enquanto o meu pai foi para o exílio. Entretanto casaram em Londres e vieram para a Granja, que na altura era pequena e quase não tinha lojas, mas era um local muito chique e bastante divertido. O comboio rápido e o Sud-Express paravam na Granja, o que dava movimento à zona, além de trazer pessoas importantes”.

As recordações dos seus primeiros anos de vida estão recheadas de bons momentos, conforme refere com entusiasmo: “A minha infância foi um bom sonho. Acho que, em geral, as coisas boas aparecem em forma de sonhos. Tive uma infância muito feliz. Passava muito tempo com uma tia-avó que me adorava e gostava imenso das viagens com ela”. Aliás, o conhecimento proporcionado pelos passeios constantes permitiu uma relação com a natureza que mantém inalterável: “Gosto da simplicidade da ruralidade. Gosto dos pinheiros, os milheirais, os espigueiros, as praias, o mar… Enfim, gosto disso tudo e o verde é a minha cor preferida”.

O humor peculiar da Marquesa de Ficalho surge novamente quando reafirma que passou uma infância feliz com os dois irmãos mais velhos e as duas irmãs mais novas: “Como éramos cinco filhos, acho que fiquei no meio da sanduíche. Devo ser o fiambre. A relação com os meus irmãos era óptima e estávamos sempre muito divertidos”.

Entrevista publicada em Homenagem a Maria das Dores Eça de Queiroz de Mello, Marquesa de Ficalho (1918-2004)

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