Erri di Luca: “A escrita é a minha melhor companhia”
Foi operário da construção civil em Itália, França e África. Na altura da guerra na Bósnia conduziu um camião de assistência humanitária. Foi bagageiro no aeroporto de Catania. Pertenceu ao movimento extrema-esquerda italiano, Lotta Continua, facto que o levou ao cárcere. O seu nome é Erri di Luca e, pela altura do lançamento do seu romance , em 2002, tive a oportunidade de o entrevistar. Essa mesma entrevista é agora publicada de novo, desta vez em suporte digital.
Com um percurso no mínimo insólito, Erri di Luca é actualmente um dos mais prestigiados escritores italianos. Nesta sua obra descreve como ninguém a velha Nápoles popular, antiga e secreta, onde um jovem napolitano de 13 anos começa a ser homem. O recurso à fantasia e ao sobrenatural invadem as ruas deste bairro e a história deste livro.
Dos espíritos que sopram na orelha do rapaz quando este sobe aos estendais para praticar o lançamento do seu boomerang, passando pelas asas de Rafaniello que vão crescendo ao mesmo tempo que sonha em voar para Jerusalém. Estas e outras personagens são a companhia de Erri enquanto escreve pois, apesar de para si a escrita ser fisicamente um acto solitário, ele é rodeado por uma multidão de personagens que não inventa, mas que recria. Uma parte de si faz sempre parte da história. Dos livros que lê procura descobrir algo sobre si que ainda não conhecia, só assim faz sentido ler uma história.
Com um olhar por vezes distante, o escritor transmite uma calma indescritível, talvez por tudo aquilo que já viveu.
Erri di Luca: o autor fala da sua obra Montedidio
Começo por lhe perguntar se pode ser considerado um romance autobiográfico?
Habitualmente escrevo histórias sobre a minha vida. Neste romance o único factor autobiográfico é unicamente a cidade de Nápoles depois da guerra. Aquela miséria contra a qual as pessoas se defendiam, com muita recurso à fantasia e ao sobrenatural. Montedidio é o lugar onde nasci e cresci.
Identifica-se com alguma das personagens que criou?
A personagem que escreve é um rapaz que em nada se parece comigo. Eu não venho daquela família. A minha infância foi passada dentro de uma família burguesa que vivia naquele bairro, mas que empobreceu com a guerra. O único bem que o meu pai e a minha mãe tinham era uma casa que foi bombardeada durante a guerra e acabámos por perder tudo. Éramos de facto pobres, mas mantínhamos uma maneira de ser burguesa muito ligada à cultura de pessoas que liam, iam ao cinema e ao teatro. Tentávamos fazer uma vida normal burguesa, ao passo que aquela família de Montedidio é uma família pobre que não é a minha.
Todas as suas personagens têm um nome, porque decidiu não dar um nome à sua personagem principal?
Escrevo histórias que têm um ‘eu’ que narra. Um narrador. Não sou um escritor que escreve à distância, que escreve na terceira pessoa, porque eu não sou o patrão ou o director da orquestra da história. Escrevo de dentro das histórias. Escrevo como alguém que está dentro delas e que, ao mesmo tempo, conta a si próprio o seu nome que até aí lhe era desconhecido. Neste caso é uma espécie de diário e aqui não se escreve o próprio nome. É um ponto de vista dentro de uma história de muitas personagens. Um ponto de vista sobre uma história mais geral, onde se encontram mais pessoas e, provavelmente, quem a conta talvez não a conheça tão bem como os outros.
Uma das coisas que reparei é que faz descrições pormenorizadas de locais e personagens, de uma maneira que somos capaz de sentir o cheiro do mar, de sentir o vento no cimo dos estendais e até o cheiro das pizzas de Don Gigino. Este é um dos pontos principais da sua escrita? É através das descrições que atenta captar a atenção do leitor?
É a única maneira que conheço para escrever. Escrevo assim, porque todo o meu conhecimento é físico e não abstracto. Não é uma cabeça especulativa que produz ideias abstractas ou uma experiência física muito atenta. Sou fisicamente muito atento, mas só depois é que essas experiências chegam à cabeça e a cabeça é o fim dessa experiência. É aquela que a regista, porque a minha escrita é continuamente material e fala continuamente da experiência do corpo que é a máquina principal da história.
Outros dos pontos da sua escrita reside na pontuação. A maneira como escreve impele-nos para uma leitura desenfreada, juntando o facto de que estamos sempre à espera do dia em que ele irá atirar o boomerang oferecido pelo pai…
A pontuação é onde termina a frase. É um modo de sentir a frase – tu é que a entendes e ouves – eu ouço-a antes mesmo de a escrever. Neste caso, as frases curtas ajudam a sentir a voz do rapaz que está a escrever. Ele escreve as frases que são um resumo daquilo que viveu durante o dia, da sua experiência. No final de cada dia ele ordena as suas ideias fazendo calar o ruído do dia numa língua calada, silenciosa…
Uma das personagem do romance é o Rafaniello, o judeu vindo do Norte da Europa que queria ir para Jerusalém, mas que acabou por ficar em Nápoles. Esta personagem foi criada pela ligação que tem com os textos que traduz para italiano da Bíblia?
Conheço duas línguas hebraicas: uma é o hebraico do Antigo Testamento e a outra é o ìdiche. O ìdiche é a língua dos hebreus da Europa Oriental, de origem alemã mas que é escrita em caracteres hebraicos. Foi a língua em que escreveu, por exemplo, Isaac Singer. O Rafaniello nasce do meu contacto com a literatura ìdiche. Lendo aquela literatura encontrei muitas proximidades entre ela e a miséria napolitana. O modo de reagir e de sobreviver àquela miséria. Portanto, Rafaniello significa situar em Nápoles uma personagem da literatura ìdiche.
Li que Jerusalém é chamada a cidade de sangue, assim como Nápoles. Porquê juntar estas duas cidades?
Pelo sangue (risos). O sangue de Jerusalém é histórico. É uma condenação definitiva. Jerusalém será para sempre uma cidade de sangue e isso está escrito no Antigo Testamento. Nápoles é também uma cidade de sangue, porque a vida das pessoas é frequentemente conjugada com ele. É uma cidade que está familiarizada com as mortes violentas. Depois existe também o culto do sangue. São Januário, o seu santo protector e, deixou uma relíquia – o seu sangue dentro de um vidro. E este duas vezes ao ano – como que um milagre da transformação – passa de seco a líquido e depois retorna a seco. Este milagre é sempre muito esperado na cidade. O milagre da liquidificação de São Januário. Os napolitanos veneram esta relíquia sanguínea.
É um culto meramente napolitano?
Sim. É um culto que só existe em Nápoles. Entretanto, existe também um factor curioso que é o facto deste bairro em Nápoles se chamar – Monte de Deus, porque este nome legitimamente só existe em Jerusalém. Diz-se na Bíblia que Jerusalém é o escabelo onde Deus põe os pés.
Em determinada parte do seu livro, quando o rapaz de 13 anos descreve a escola e a diferença que existe entre ricos e pobres, no fim ele termina a dizer: “sei italiano, uma língua calma que fica sossegada dentro dos livros”. Concorda com esta afirmação?
Era isso que se passava naquela cidade depois da guerra. Naquela altura, o italiano não era uma língua falada. Era uma língua que só se encontrava nos tribunais, na burocracia do Estado ou nos livros. Em toda a cidade falavam-se os dialectos, neste caso o dialecto napolitano. O italiano era uma língua silenciosa que estava nos livros. Este rapaz durante o dia só ouvia napolitano e à noite precisava de uma língua calada, silenciosa para pôr calma nesse rumor do dia. Por isso ele escrevia a sua experiência diária em italiano.
O erotismo também está presente, mas não de uma maneira que choca o leitor, porque se trata da descoberta do amor, da inocência dos 13 anos… Era essencial na construção da sua personagem esta componente?
Acho que não existe propriamente erotismo. Há sim um contacto físico directo. Uma aliança criada entre os dois que parte da jovem rapariga, sem qualquer cortejamento ou sedução. É um abraço de aliança contra o mundo dos adultos.
Nas descrições que faz da vida deste jovem ele teve de crescer depressa, isso também aconteceu consigo? Como era a sua vida aos 13 anos?
Acho que o que se passa com este jovem é o mesmo que acontece com todos os rapazes: o crescer rápido. Até o crescimento do corpo é brusco, pois não acontece gradualmente. É como se o corpo de repente desse um salto. O mesmo acontece com a experiência. A experiência não é um acumular gradual de conhecimento, mas subitamente um concentrado de acontecimentos, que fazem com que sejamos aquilo que somos e aquilo que sabemos. Há momentos na vida de cada um em que se concentram o passado, o presente e o futuro. E nessas passagens rápidas e intensas é como se estivesse presente o destino de uma pessoa. A minha situação não foi diferente de outros adolescentes, mesmo fisicamente o meu corpo também deu saltos. São momentos em que tudo acontece, mas para os quais as pessoas nunca estão preparadas.
Erri di Luca: a solidão da arte de escrita
O seu percurso enquanto escritor é muito diferente de alguns escritores que conheço. Foi pedreiro, camionista, conduziu um camião que fazia parte da coluna humanitária que foi enviada para os Balcãs, pertenceu ao movimento de extrema-esquerda Lotta Continua… No meio de tudo isto, onde é que surge esta sua paixão pela escrita?
A escrita vem de um hábito de rapaz e do modo com a qual sempre tive companhia. A melhor companhia. Muito mais do que a companhia das pessoas. Cresci com a escrita.
É isso que mais o seduz na escrita, a companhia?
Para mim este é o seu valor de uso. Eu só escrevo porque assim tenho companhia. Não posso chamar à escrita um trabalho e nisso sou diferente de outros escritores que falam de trabalho quando escrevem. Para mim a escrita é sempre o tempo retirado ao trabalho. É o meu melhor tempo.
O acto de escrever é para si um acto solitário?
Evidentemente que é solitário, mas para mim é um acto de encontro com outras pessoas. À medida que escrevo vou recordando qualquer coisa do passado, porque eu não invento personagens. Ao recordar o passado estou perto daquela pessoa. Embora fisicamente seja um acto solitário, na minha cabeça forma-se uma comunidade, uma multidão com a qual estou em contacto. Quando escrevo sinto-me rodeado destas personagens. Visto de fora é um acto solitário, para mim é um acto social. (risos)
Que sensações o invadem quando está a terminar um livro?
Quando acabo de escrever uma história a sensação que tenho é a de ter estado todo este tempo junto daquelas pessoas. Surge posteriormente uma sensação de despedida. Nessa altura, retiro-me do seu círculo e deixo repousar a história durante algum tempo. esteve parado um ano. Depois desse tempo voltei a reescrevê-lo e ao ver que esta segunda escrita me agradava, continuei e encontrei de novo aquelas personagens. Para mim, o acabar de uma história não significa que é o fim, é apenas o final de um período passado. Só me despeço definitivamente daquelas personagens quando reescrevo a história pela segunda vez.
Para o leitor português ou se preferir para o leitor em geral que ainda não teve a oportunidade de ler este romance, que argumentos usaria para o tentar convencer?
Como não conheço Portugal não sei o que poderá interessar ao leitor português, por isso dirijo-me ao leitor universal. Como leitor procuro nas histórias dos outros descobrir alguma coisa sobre mim que não sabia. Uma das coisas que me agrada descobrir é algo que eu ainda não conheço. Procuro sempre uma razão para escolher um livro. Um livro que não fala para mim, mas de mim. Se eu não for pelo menos um bocadinho “O Idiota” de Dostoievski, aquele livro poderá ser magnífico mas não fala comigo, não fala sobre mim. É preciso que eu encontre um pouco da minha pessoa nesses livros para que me sinta impelido a lê-los.
Em , qualquer pessoa pode encontrar um pouco sobre a sua adolescência mesmo que já a tenha esquecido ou mesmo que a esteja a encontrar pela primeira vez.