Ilíada: o berço da esquizofrenia literária
A Ilíada de Homero constitui a origem da tradição literária europeia. Envolto em polémicas quanto à sua estrutura, autoria e conteúdo, é, no entanto, unânime quanto à qualidade literária e longevidade daquele poema que constitui o início da lista de clássicos essenciais, que todos os apaixonados pelas letras deveriam ler. Neste artigo, procuramos sintetizar as polémicas e as virtudes da Ilíada.
A Homero é atribuída a autoria da e da . Segundo o historiador Heródoto, terá vivido no século VIII a.C., na zona do Helesponto (atualmente, Dardanelos), descrito como o aedo invisual e que é retratado desta forma no filme dos irmãos Coen (2000). Aqui se inicia a polémica. E a esquizofrenia. Homero terá mesmo existido? Tendo em conta a tradição oral da época, que texto escrito terá chegado até nós: o original ou uma construção contínua?
Naquela que é considerada a melhor tradução para a nossa língua (), Frederico Lourenço defende uma coerência entre os textos da Ilíada e a Odisseia, afirmando que terão uma origem comum. Ademais, apesar de algumas formulações prosaicas que remetem para a tradição oral, tal não impede a sua origem escrita. E Homero terá sido mesmo o seu autor.
O facto da primeira edição conhecida datar cerca de duzentos anos depois da sua conceção (c. séc. VIII a.C.) dá azo a interpretações e polemiza o debate. Esta primeira edição foi publicada por uma família aristocrática de Atenas no séc. VI a.C. Aristóteles preparou uma edição da , para ser lida ao seu discípulo mais famoso, Alexandre da Macedónia, o Grande. Muitas edições críticas foram produzidas precisamente na biblioteca criada por Alexandre, em Alexandria (situada no atual Egito) e, mil anos mais tarde, foi o clero regular a copiar os textos para que não se perdessem. É de 1488 a primeira edição impressa, após a invenção de Gutenberg e, três décadas depois, o bispo de Silves, D. Jerónimo Osório, traduz para português os oito primeiros cantos da obra, tarefa que será retomada pela Marquesa de Alorna.
Ilíada: a história do homem que é muitos
“Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.”
É com estes versos que começa a Ilíada, apresentando o seu protagonista – Aquiles -, fazendo menção ao seu temperamento e bravura, e o conflito entre ele e Atrida – o rei Agamémnon. Mas Ilíada remete para Ílio ou Ílion, mais conhecida por Troia e para o conflito que opôs Gregos e Troianos. Mas o poema é isso e muito mais do que isso, sem ser isso. Confusos? Ainda bem.
A guerra de Troia tem origem num rapto consentido. Páris, filho do rei de Troia, apaixona-se por Helena, mulher do grego Menelau, e leva-a consigo para Troia. Rapta-a, mas o amor é correspondido. Menelau quer resgatá-la, mas tem vergonha dela. Inicia-se a guerra entre gregos e troianos, mas no poema os gregos são sempre, ou Aqueus, ou Argivos, ou Dânaos – nunca são referidos como gregos; e os troianos, ou Dárdanos, ou Dardânidas, ou Dardânios – nunca troianos. A guerra dura dez anos, mas Homero apenas conta os últimos quarenta dias. Aquiles é o protagonista, mas passa dezoito dos vinte e quatro cantos sem aparecer na narrativa. A cólera seria cantada pela deusa, mas o amuo é o sentimento predominante no poema. Aquiles é o herói, mas é por Heitor que choramos.
Esta dicotomia de emoções faz com que o poema, que também é prosa, tenha uma força pungente aos olhos de um leitor do século XXI. A individualização dos homens que participam na guerra torna-os humanos; o cantar da glória dos homens e deuses é totalmente literária e desprovida de ideologia, ao contrário do que aconteceria no teatro grego.
A é, ao contrário de Troia, uma obra indestrutível, dificilmente ultrapassável e obrigatoriamente incontornável. É esquizofrénico, sim, mas quem disse que isso é mau?
Que texto fantástico, certamente ainda não tenho a capacidade intelectual pra ler tal obra. Mas seu texto me deu uma vontade tremenda de me aventurar por esses meandros da literatura. Obrigado pelo deleite!