Ilíada: o berço da esquizofrenia literária
A Ilíada de Homero constitui a origem da tradição literária europeia. Envolto em polémicas quanto à sua estrutura, autoria e conteúdo, é, no entanto, unânime quanto à qualidade literária e longevidade daquele poema que constitui o início da lista de clássicos essenciais, que todos os apaixonados pelas letras deveriam ler. Neste artigo, procuramos sintetizar as polémicas e as virtudes da Ilíada.
A Homero é atribuída a autoria da Ilíada e da Odisseia. Segundo o historiador Heródoto, terá vivido no século VIII a.C., na zona do Helesponto (atualmente, Dardanelos), descrito como o aedo invisual e que é retratado desta forma no filme Irmão, onde estás? dos irmãos Coen (2000). Aqui se inicia a polémica. E a esquizofrenia. Homero terá mesmo existido? Tendo em conta a tradição oral da época, que texto escrito terá chegado até nós: o original ou uma construção contínua?
Naquela que é considerada a melhor tradução para a nossa língua (Cotovia, 2007), Frederico Lourenço defende uma coerência entre os textos da Ilíada e a Odisseia, afirmando que terão uma origem comum. Ademais, apesar de algumas formulações prosaicas que remetem para a tradição oral, tal não impede a sua origem escrita. E Homero terá sido mesmo o seu autor.
O facto da primeira edição conhecida datar cerca de duzentos anos depois da sua conceção (c. séc. VIII a.C.) dá azo a interpretações e polemiza o debate. Esta primeira edição foi publicada por uma família aristocrática de Atenas no séc. VI a.C. Aristóteles preparou uma edição da Ilíada, para ser lida ao seu discípulo mais famoso, Alexandre da Macedónia, o Grande. Muitas edições críticas foram produzidas precisamente na biblioteca criada por Alexandre, em Alexandria (situada no atual Egito) e, mil anos mais tarde, foi o clero regular a copiar os textos para que não se perdessem. É de 1488 a primeira edição impressa, após a invenção de Gutenberg e, três décadas depois, o bispo de Silves, D. Jerónimo Osório, traduz para português os oito primeiros cantos da obra, tarefa que será retomada pela Marquesa de Alorna.
Ilíada: a história do homem que é muitos
“Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.”
É com estes versos que começa a Ilíada, apresentando o seu protagonista – Aquiles -, fazendo menção ao seu temperamento e bravura, e o conflito entre ele e Atrida – o rei Agamémnon. Mas Ilíada remete para Ílio ou Ílion, mais conhecida por Troia e para o conflito que opôs Gregos e Troianos. Mas o poema é isso e muito mais do que isso, sem ser isso. Confusos? Ainda bem.
A guerra de Troia tem origem num rapto consentido. Páris, filho do rei de Troia, apaixona-se por Helena, mulher do grego Menelau, e leva-a consigo para Troia. Rapta-a, mas o amor é correspondido. Menelau quer resgatá-la, mas tem vergonha dela. Inicia-se a guerra entre gregos e troianos, mas no poema os gregos são sempre, ou Aqueus, ou Argivos, ou Dânaos – nunca são referidos como gregos; e os troianos, ou Dárdanos, ou Dardânidas, ou Dardânios – nunca troianos. A guerra dura dez anos, mas Homero apenas conta os últimos quarenta dias. Aquiles é o protagonista, mas passa dezoito dos vinte e quatro cantos sem aparecer na narrativa. A cólera seria cantada pela deusa, mas o amuo é o sentimento predominante no poema. Aquiles é o herói, mas é por Heitor que choramos.
Esta dicotomia de emoções faz com que o poema, que também é prosa, tenha uma força pungente aos olhos de um leitor do século XXI. A individualização dos homens que participam na guerra torna-os humanos; o cantar da glória dos homens e deuses é totalmente literária e desprovida de ideologia, ao contrário do que aconteceria no teatro grego.
A Ilíada é, ao contrário de Troia, uma obra indestrutível, dificilmente ultrapassável e obrigatoriamente incontornável. É esquizofrénico, sim, mas quem disse que isso é mau?
Que texto fantástico, certamente ainda não tenho a capacidade intelectual pra ler tal obra. Mas seu texto me deu uma vontade tremenda de me aventurar por esses meandros da literatura. Obrigado pelo deleite!