Leite e Mel: uma obra feminista para todos os leitores
Já muito se tinha dito acerca do livro Leite e Mel (conhecido no Brasil como Outros Jeitos de se Usar a Boca) de Rupi Kaul quando finalmente decidi comprá-lo. O sucesso do livro precedia-o: trata-se de uma coletânea de poesia, prosa e ilustrações feitas à mão que abordam diferentes temas desde o feminismo à perda, contemplando ainda assuntos como amor, trauma e recuperação. Hoje, partilho convosco a minha opinião acerca do livro.
Tudo começa com Rupi Kaur, uma jovem poetisa de 24 anos, nascida na Índia mas criada em Toronto, que ao longo da sua infância cresceu dividida entre a sua herança cultural e uma realidade distinta a esse mesmo mundo. O resultado foi uma história acerca de sobrevivência, onde partilha momentos da sua vida escritos de forma tocante, com poucas palavras que, mesmo sendo poucas, são suficientes para ter impacto no leitor.
É quase de estranhar que neste livro que tem um título tão “doce” se desconstruam temas que não são tão doces: a objetificação do corpo da mulher, o menosprezo pelo papel feminino na sociedade, a educação diferenciada entre géneros, o abuso infantil, os estereótipos irreais de beleza, a violência familiar e as relações de intimidade, assédio e abuso sexual, repressão do prazer. Mas como vamos sabendo, à medida que devoramos este livro como se de leite e mel se tratasse, é que Rupi Kaur tenta sensibilizar-nos para a necessidade de procurarmos constantemente a doçura que há no mundo.
Mas mais do que isso é o facto de que o livro Leite e Mel consegue captar a nossa atenção por se assumir como uma história de sobrevivência através da poesia. Para a autora, é o sangue, suor e lágrimas dos seus vinte e um anos de vida, compilados naquele texto que é de escrita tão simples, mas com raciocínios complexos. Por vezes ao lermos o livro torna-se surpreendente e até mesmo inacreditável que alguém tão jovem consiga dominar as palavras de forma tão magnífica para nos descrever sentimentos com que facilmente nos revemos.
À medida que ia lendo o livro, sentia muito a sensação de insight. Cada poema, mesmo aqueles só com duas ou três linhas, parecem ser verdades reveladas, que todos nós já vivemos de alguma forma e que se encontram dentro de nós, mas que nunca conseguimos transpor cá para fora através de palavras. E acreditem, certos poemas conseguem mesmo tocar em certas feridas.
A forma como Rupi Kaur concilia ainda as palavras com as ilustrações também é digno de louvor. Não encontramos ilustrações elaboradas ou coloridas. O livro é todo ele a preto e branco, e as ilustrações seguem o mesmo estilo. A simplicidade de todos os desenhos dá ainda mais valor ao livro. São ilustrações que parecem feitas com um lápis, rabiscadas no canto de uma página, sempre com o intuito de representar graficamente certas emoções que possamos estar a sentir com a leitura.
Claro está que a certo ponto temos de perguntar: tudo isto que estamos a ler é autobiográfico? Não necessariamente. Em várias entrevistas a autora disse que o sofrimento, raiva, melancolia, doçura e pacificação nas suas palavras é real, mesmo que não o tenha vivido todo na pele. No entanto, as palavras não surgem do nada, sem fonte de inspiração, uma vez que Rupi Kaur escreve sobre a vida daqueles que a rodeiam e das muitas mulheres com que se cruzou.
O caminho peculiar de Leite e Mel até ao sucesso
A forma como o livro alcançou o sucesso merece ele mesmo ser admirado e aplaudido porque, de certa forma, faz parte da história. Com apenas 21 anos, a poetisa canadiana Rupi Kaur reuniu uma série dos seus trabalhos dispersos com a ideia de os partilhar com o mundo. Os poemas e ilustrações eram partilhados através das redes sociais, publicados com textos dispersos. No entanto, à medida que ia conseguindo mais e mais seguidores, e que a pergunta “Onde posso comprar o teu livro?” se ia tornando mais frequente, surgiu a necessidade de dar o passo para o mundo editorial.
Avisada de que o seu material poderia ser mal-aceite nos círculos literários mais prestigiados, a autora decidiu tentar a sorte por si mesma e fazer uso do que a Internet tinha para dar. Assim, em 2014, autopublica um livro intitulado Leite e Mel através da Amazon.
Do que não estava à espera era que a obra registasse a popularidade que se verificou nos meses seguintes, chamando não só a atenção de leitores, como também de editores. Conseguindo então assinar com a Andrews McMeel Publishing, Rupi Kaur vê a sua obra chegar às livrarias e tornar-se um sucesso internacional. Em abril de 2017, o livro tinha vendido já mais de um milhão de exemplares.
Para mulheres, este é sem dúvida um livro a ler, por todos os temas que são abordados. Para homens, devia ser uma obra obrigatória porque, mais do que entender a mulher e aquilo que sente, Leite e Mel é uma excelente lição acerca de respeito pelo outro.