A morte do escritor Luis Sepúlveda: Crónica de uma Despedida
Num suave momento de distração o meu marido apareceu e disse-me “tenho uma notícia triste para te dar”.
“O quê?”
“Morreu o Sepúlveda!”
E naquele momento morreu um pouco de mim também.
Olho para a prateleira onde guardo todos os seus livros e choro. Um choro estranho de alguém que nunca conheceu Sepúlveda pessoalmente, um choro estranho de alguém cuja existência ele simplesmente ignorava.
Conheci Luis Sepúlveda numa manhã de primavera, curiosamente em terras espanholas, onde ele acabou por sucumbir.
Conheci Luis Sepúlveda na segunda vez que vi aquele que é agora o meu companheiro e pai da minha filha.
Numa paragem de autocarro, a caminho de visitar a Catedral de Maiorca vi-o novamente, já meia enamorada. Na mão carregava um livro, um companheiro de viagem. Na mão carregava “O velho que lia romances de amor”.
Amante de livros como sou quis saber mais. Ele ofereceu-me o livro que carregava. E eu rendi-me ao enamoramento.
Estávamos então no ano 2000 e ao longo das próximas 2 décadas criou-se entre nós uma estranha tradição: sempre que um novo livro de Luis Sepúlveda era editado ele comprava-o para mim.
E foi assim que eu cresci como pessoa e ser humano. Com Sepúlveda conheci a história do Chile. Com Sepúlveda chorei de raiva, de amor e aprendi o valor dos pequenos momentos.
Luis Sepúlveda: Memórias de amor em tempos de guerra
Os meus livros favoritos nunca foram os seus romances, mas sim aqueles feitos de pequenas histórias, pequenas histórias reais que me ensinaram tanto sobre a vida e toda a sua complexidade.
Em “Crónicas do Sul”, logo no segundo capítulo “Chile, ou a guerra que não existiu” aprendi como a justiça pode ser uma utopia, como uma simples contorção à lei pode privar pais e mães de ver os assassinos de seus filhos presos após 30 anos de procura pela verdade e a sua subsequente descoberta.
A 5 de Outubro de 1973 um estudante de 22 anos procura o pai desaparecido e às 4 horas da tarde é preso na rua por soldados chilenos, com violência e à vista de muita gente. No mesmo dia, apenas uma hora mais tarde, um rapazinho de 15 anos dirige-se para casa apressadamente, para cumprir o recolher obrigatório. Os mesmos soldados avistam-no e obrigam-no a juntar-se ao estudante. Mais tarde torturam-nos e matam-nos sem piedade. 30 Anos passados a verdade é descoberta e os responsáveis levados à justiça. E saem em liberdade. Porquê?
Deixo a Sepúlveda a explicação:
“Segundo a Convenção de Genebra, os crimes de guerra não prescrevem. Segundo os juízes chilenos, entre 11 de Setembro e 4 de Outubro de 1973, existiu, de facto, um estado de guerra. E também a partir de 6 de Outubro de 1973, e até finais de 1989, existiu um estado de guerra. O estudante e o rapazinho foram assassinados no dia 5 de Outubro, o único dia em que não houve guerra.”
Se aqui estivesse o saudoso Fernando Pessa certamente que diria “E esta, hein?!”
O meu livro favorito de Luis Sepúlveda (e um dos meus favoritos de todos os tempos) é sem dúvida “As rosas de Atacama”.
O toque inicial com que inicia mais uma partilha de histórias reais ainda hoje mexe comigo, me trás humilde e me faz chorar:
“Visitei há alguns anos o campo de concentração de Bergen Belsen, na Alemanha. Percorri no meio do silêncio atroz as valas comuns onde jazem milhares de vítimas do horror. (…) Numa extremidade do campo e muito próximo do lugar onde se erguiam os infames fornos crematórios, na superfície áspera de uma pedra, alguém (quem?) gravou, talvez com o auxílio de uma faca ou um prego, o mais dramático dos apelos: «Eu estive aqui e ninguém contará a minha história».”
«Eu estive aqui e ninguém contará a minha história.»
Ainda hoje dou por mim a observar estranhos com que me cruzo, sejam eles transientes num qualquer aeroporto, mendigos na rua ou simples desconhecidos com que troco palavras banais numa viagem de comboio ou qualquer outro momento da vida. Para depois me perguntar “qual será a tua história? E quem a escutará e validará?”
Quando engravidei e fui mãe perdi o contacto com as histórias de Sepúlveda durante algum tempo.
Mas um dia, perante os milhentos livros que agora colecionava e devorava sobre parentalidade, psicologia e até filosofia, na minha desesperante busca de perceber a minha filha e como ser uma boa mãe, parei o olhar numa aquisição relativamente recente mas relevada para segundo plano:
“Palavras em tempo de crise” de nada mais nada menos que Luis Sepúlveda.
“Mas que título apropriado para a minha realidade atual” pensei eu no topo do meu humor negro.
Agarrei o espécime que agora parecia supérfluo e frívolo, face ao que era a minha vida naquele momento, e resolvi dar uma espreitadela.
Qual o meu espanto quando logo no primeiro capítulo “O churrasco é assunto do velho” me deparo com uma reflexão vulnerável e enternecedora de Sepúlveda como pai.
Ainda o capítulo não tinha terminado e eu, sentada no chão, chorava já de comoção e alegria. Mais uma vez, aquele que tanto me havia dado, tocava-me no coração e curava uma ferida que mil outros livros não conseguiam curar.
Até a minha filha ser adulta, e quem sabe se não mesmo para o resto da minha vida, relerei uma e outra vez mais uma das suas pérolas de sabedoria:
“Não sei se sou, se fui um bom pai. Mas sei do carinho dos meus filhos e que tentei ser um amigo com que sempre poderão contar, um companheiro para tudo o que acontecer. E com isso estou em paz.”
Por isso, Luis Sepúlveda, me despeço agora de si, da ideia de que para sempre haveria um livro seu a acompanhar o meu crescimento, o meu envelhecimento, a minha vida.
Despeço-me com um sentido OBRIGADA, para sempre OBRIGADA.
E se perdi o sonho de um dia o conhecer em vida, acalento com mais força um outro:
O de um dia visitar o Deserto de Atacama e ver as suas rosas florir, aquelas mesmas que só o fazem uma única vez no ano.
E nesse dia saberei que um pouco de Luis Sepúlveda existe ali, nas inigualáveis Rosas de Atacama!
NOTA: Este artigo foi publicado originalmente no Blog Mundo de Parentalidade com o título Morreu o escritor chileno Luis Sepúlveda: Crónica de uma Despedida