A narrativa medieval que se fez em Portugal
Não estão ainda completamente esclarecidas as origens da historiografia portuguesa medieval, que atingiu o seu auge no século XV. Só recentemente este campo começou a ser desbravado. Embora a historiografia tivesse aparecido nas Astúrias e em Leão no século XIII, em Portugal só se conhecem numa época mais tardia, sobre a forma de anais fragmentários que são meros registos de acontecimentos importantes ocorridos entre as regiões do Minho e do Mondego.
Na passagem para o século XIII, o reinado de D. Afonso Henriques é objecto de registos latinos e de notícias analíticas. Mas, em 1344, redige-se uma Crónica Geral de Espanha em língua portuguesa, da qual só se conservou a tradução castelhana.
A narrativa medieval, de carácter mais ou menos imaginário, resulta da síntese entre a tradição literária latina e a tradição oral jogralesca. Neste post, que faz parte de um especial do Mundo de Livros sobre a história da língua e literatura portuguesa, avançamos para a forma como a narrativa medieval começou a ser expressada em Portugal.
As influências da narrativa medieval britânica
No mesmo meio palaciano onde se apreciava a poesia lírica, não podia faltar o interesse pelos relatos de aventuras, de amor e de cavalaria, difundidos por poemas jogralescos e finalmente fixados em prosa por D. Dinis e pelos seus colegas poetas. Tais textos aludem frequentemente a personagens romanescas como Tristão e Isolda, Merlim, Flores e Brancaflor.
É de presumir que adaptações portuguesas ou castelhanas de histórias da Bretanha fizessem parte do repertório dos jograis peninsulares. Independentemente disso, realizaram-se no último quartel do século III, talvez já na corte de D. Afonso III, traduções de romances franceses em prosa, do ciclo da Demanda do Graal e talvez de outros títulos semelhantes.
A cópia quinhentista de José de Arimeteia é dedicada a D. João III, grande aficcionado de romances de cavalaria. O interesse da tradução portuguesa das obras que constituem o Ciclo Bretão, está em que ela nos oferece o mais antigo texto português em prosa literária, embora a matéria não seja original. Embora a ordenação geral, a sucessão de episódios, o processo de narrar, sejam, evidentemente, qualidades do autor, são da responsabilidade do tradutor o vocabulário, a construção sintáctica, as locuções e o ritmo.
Estes elementos tiveram que ser recolhidos ao fundo idiomático da língua do tradutor, ou seja, a língua portuguesa. A influência em Portugal do Ciclo Bretão foi prolongada. As cópias hoje existentes são dos século XV e XVI, o que significa que desde fins do século XIII até àquela época, a obra não deixou de ser lida.
Amadis de Gaula: português ou castelhano?
Um dos romances dessa época que ainda hoje cria polémica é Amadis de Gaula. Sabe-se que foi escrito na Península Ibérica, mas existem dúvidas quanto à nacionalidade do autor. Se há quem afirme que foi escrito por um português, há também quem diga que o seu autor é castelhano. Em qualquer um dos casos, não há dúvidas que é uma obra peninsular, contemporânea ainda da primeira fase da poesia da corte medieval, e mais representativa do que a Demanda do Graal.
O tema da sensualidade que percorre o Amadis de Gaula traduz uma concepção de vida bem diferente da que está simbolizada na Demanda do Graal.
O advento da dinastia de Aviz intensificou na corte portuguesa o interesse pelos problemas teóricos e doutrinários, religiosos, políticos, morais e até psicológicos. Nada sabemos da poesia lírica sob os reinados de D. João I e D. Duarte e sob a regência de D. Pedro, a não ser a existência na biblioteca de D. Duarte de um volume que se intitulava Livro das Trovas de El-Rei e, embora seja difícil admitir que o lirismo se tenha apagado de todo numa corte onde tinha a seu favor uma longa tradição, o facto é que os problemas dominantes nas obras que nos restam dos príncipes de Avis encontram na prosa a sua expressão mais apropriada.
Entre essas obras encontram-se o Livro da Montaria, de D. João I, a Ensinança de bem cavalgar toda sela e Leal Conselheiro de D. Duarte, e a Virtuosa Benfeitoria, do infante D. Pedro, que fez também traduções de Cícero, Séneca, Vegécio e Egídio Romano. A produção literária nesta altura era de carácter eminentemente prático, produzindo-se manuais e compilações que facilitassem a aprendizagem ou aperfeiçoamento de determinada técnica ou conceito.
De realçar ainda, que esta mentalidade pragmática foi introduzida na corte por D. Filipa de Lencastre, que sendo inglesa era dona de uma moral rigorosa e de um pragmatismo vincado.