O beijo que Puig me deu
Parece ser uma questão de língua.
Do tronco ibero saído da Europa – mais precisamente o espanhol – até os países da América do Sul; o exagero, a paixão e o drama, é algo que soa – e soou – tão poderoso tanto como o fio da espada de Francisco Pizarro.
Assim como a língua transmite também suas bactérias, através da sincope fonética, do léxico e da organização semântica é que se destrói e se constrói, de forma igualmente eficaz, os signos e a noção de “mundo” de um povo. E da mesma forma, através desse mesmo canal, podemos estabelecer um paralelo entre as manifestações artísticas e culturais desse mesmo povo. Percebi isso, no dia que recebi o beijo de Puig.
Até aquele dia não conhecia muito da obra desse brilhante argentino, além de saber que havia uma adaptação de seu livro mais conhecido para o cinema – pelo também argentino, o diretor Hector Babenco – premiada em Cannes nos anos oitenta: O beijo da mulher aranha.
A capa de uma edição do livro que encontrei em um sebo, publicada em 1981 pela editora Codecri – oriunda do extinto jornal O pasquim – era pra lá de suspeita. O desenho de uma mulher, talvez um travesti, com uma pintura pesada no rosto, meio egípcia, meio gótica, se arrastando languidamente sobre o que parecia ser uma teia negra.
O beijo da mulher aranha foi lançado originalmente em 1976, e assim como Pedro Almodóvar – e bem antes dele – Manuel Puig já trabalhava com os adereços de uma sofisticação kitsch, a literatura de folhetim e a questão de gênero, bem como lançava um olhar para Hollywood, com um tipo de glamour decadente.
A trama do beijo da mulher aranha é simples. Toda a ação se dá na cela de uma cadeia – nos anos de chumbo da ditadura argentina – e assim conhecemos a história de Valentín e Molina: um preso político e o outro, um homossexual, preso por corrupção de menores.
Como forma de distração – ou de esquecimento – todas as noites antes de dormirem, Molina conta a seu companheiro de cela histórias sobre filmes de terror b; dramalhões de telenovelas e filmes de propaganda nazista que assistia ainda criança em Belgrano – um bairro de Buenos Aires, onde vivem muitos descendentes de alemães.
Até então, tudo normal. Mas “eis” surge à marca do gênio.
O jovem estudante comunista, percebendo a “superficialidade” nos filmes que Molina lhe conta, propõe que os dois façam arranjos nesses mesmos filmes de acordo com suas percepções de como deveria “ser” ou “agir” cada personagem – suas motivações, personalidades, etc. E assim cada “nova” história vai ganhando profundidade.
O campo da descrição narrativa se dá apenas nas histórias contadas por Molina. Entre ele e Valentín há apenas “falas”. O que passa ao leitor a impressão “sinestésica”- através dessa comunicação – de que os personagens estão mesmo no escuro de uma cela. O tempo todo.
Manuel Puig usa do tempo e do conhecimento – do qual passou assistindo a filmes da década de 40, e do trabalho como roteirista de cinema- para interpor suas associações de imagens, como um efeito fotográfico de narrativa, da mesma forma como também usa efeitos de intertextualidade, estabelecendo uma ponte de semiótica entre a história de vida dos apenados e os filmes que relatam.
O que vale destacar também nesse livro são as notas de rodapé psicanalíticas que fazem referência à homossexualidade de Molina. Em certos momentos seu conteúdo torna-se tão extenso – chegando até a mais de páginas! – que dá a impressão de quem às lê, de que o personagem “Molina” está ali apenas como alegoria, para justificar as ideias da nota de rodapé e não o contrário.
E assim como Sherazade e Shariar, ao fim das mil e uma noites, Valentín e Molina, através dessas histórias – como suas fragilidades, seus sonhos – vão da desconfiança à ternura, estabelecendo laços para um final surpreendente e trágico.
O beijo da mulher aranha está naquela mesma categoria de livro que, ao terminá-lo de lê-lo, temos a mesma sensação de Rick Blaine (Humprey Bogart) na cena final de Casablanca, quando, ao despedir-se de Ilsa Lund (Ingrid Bergman) – o grande amor de sua vida – num cenário cinza de aeroporto, de repente a vê partir. Sem beijo algum.
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(1) Francisco Pizarro Gonzáles(1476-1541). Explorador e conquistador espanhol. Conquistou o império Inca.